A Verdadeira Historia Sobre João Paulo I

Em Nome de Deus

David Yallop

Uma investigação em torno do assassinato de João Paulo I.


Tarde da noite de 28 de setembro ou cedo na manhã de 29 de setembro de 1978, o Papa João Paulo I, Albino Luciani, conhecido como o Papa Sorriso, morreu quando fazia apenas 33 dias que fora eleito. A causa da morte — sem o laudo pericial de uma autópsia — foi anunciado pelo Vaticano à imprensa mundial como tendo sido um "infarto do miocárdio". David Yallop começou a investigar essa morte a pedido de pessoas residentes na Cidade do Vaticano, inconformadas com o silêncio que pesava sobre as verdadeiras circunstâncias a respeito da descoberta do corpo do Papa. Durante a contínua e intensa pesquisa que realizou nos três anos seguintes, Yallop iria descobrir — como Albino Luciani havia descoberto durante seu pontificado — a existência de uma cadeia de corrupção, ligando figuras de proa nos círculos financeiros, políticos, clericais e do crime numa conspiração de âmbito mundial. Um feroz inimigo da corrupção, a despeito de seu modo humilde e cortês, Albino Luciani não chegou a viver para colocar em ordem a casa que agora chefiava.

O novo Papa havia iniciado uma revolução. Havia ordenado uma investigação no Banco do Vaticano, e especificamente nos métodos empregados pelo seu Presidente, o Bispo Paul Marcinkus. Ele estava a ponto de efetuar uma radical mudança de postos no staff do Vaticano e havia discutido uma lista de remoções com o seu Secretário de Estado, o Cardeal Jean Villot (cujo nome constava da lista), na última noite da sua vida. Essa lista tinha relação direta com outra em poder do Papa — uma lista de clérigos dentro do Vaticano que pertenciam à Maçonaria — fato que por si só justificava imediata excomunhão da Igreja Católica Romana. Luciani sabia também de um informal e ilegal ramo da Maçonaria, chamado P2, que se estendendo muito além dos limites da Itália, na sua acumulação de riqueza e poder, havia certamente penetrado no Vaticano, envolvendo padres, bispos e até mesmo cardeais. Causava, porém, alarme talvez ainda maior o fato de que Luciani estava planejando adotar uma posição liberal na controvertida questão do controle da natalidade. Em flagrante contraste com a impressão mais tarde dominante da inflexibilidade do Papa com respeito a esse tópico, Luciani havia de fato planejado receber no mês seguinte uma delegação do Congresso americano enviada pelo Departamento de Estado para discutir a questão do controle populacional.

Seis homens em particular tinham razões poderosas para quererem controlar as atividades do Papa João Paulo I. Além do Bispo Marcinkus e do Cardeal Villot, no Vaticano, o banqueiro siciliano Michele Sindona estava em Nova York resistindo às tentativas do Governo Italiano de conseguir sua extradição A rede de irregularidades no Banco do Vaticano, que a nova ivestigação do Papa iria inevitavelmente revelar, incluia a "lavagem" do dinheiro da Máfia, com isso levando o assunto de volta a Sindona, através de suas antigas ligações com Roberto Calvi. Em Chicago, o chefe da mais rica arquidiocese do mundo, Cardeal Cody, estava a pique de ser removido pelo novo Papa. Sobre pelo menos três desses homens pairava a sombra de um outro, Licio Gelli — o "Titereiro", que controlava a loja maçônica P2 e através dela controlava a Itália.

As revelações de David Yallop mostram em detalhes as atividades financeiras criminosas que levaram ao suborno, chantagem e, indo além em mais de uma oportunidade, ao assassinato. Yaliop está convencido de que o assassinato era o destino que aguardava o Papa João Paulo I, Albino Luciani, e apresenta neste livro as provas de sua convicção.

O primeiro livro de David Yallop, To Encourage the Others (Para Encorajar os Outros), levou o Governo Britânico a reabrir um caso de homicídio, cujo processo estava oficialmente encerrado na justiça havia 20 anos. O livro provocou acalorados debates na TV inglesa, na Câmara dos Lordes e pronunciamento de diversos escritores, restando ao fim da polêmica a convicção pública de que houvera um grave erro judiciário. Seu segundo livro, The Day the Laughter Stopped (O Dia em que o Riso Parou), foi aclamado nos dois lados do Atlântico como a biografia definitiva e a reabilitação póstuma do comediante do cinema mudo Roscoe (Fatty) Arbuckle, que ficou conhecido no Brasil com o apelido de Chico Bóia. Essa obra esclareceu o mistério de um homicídio praticado havia 50 anos. Deliver Us From Evil (Livrai-nos do Mal) foi estimulado pelo desejo de Yallop de pôr um homem na cadeia, o tristemente célebre Estripador de Yorkshire, homicida que durante mais de cinco anos zombou dos esforços da policia britânica para identificá-lo. As conclusões do autor, certíssimas, resultaram na prisão do criminoso, após uma série horrenda de crimes em que as vítimas foram sempre mulheres. Pouco depois disso, David Yallop, nascido católico romano, foi solicitado a investigar a morte do Papa João Paulo I

Prólogo

O líder espiritual de quase um quinto da população mundial manipula um imenso poder. Mas qualquer observador desinformado de Albino Luciani, no início de seu pontificado como Papa João Paulo 1, acharia difícil acreditar que aquele homem realmente encarnava tanto poder. A timidez e humildade emanando daquele pequeno e quieto italiano de 65 anos levaram muitos a concluir que o seu papado não seria particularmente notável. Os bem-informados, no entanto, sabiam que não era bem assim: Albino Luciani iniciara uma revolução.

A 28 de setembro de 1978 ele era Papa há 33 dias. Em pouco mais de um mês, lançara-se por diversos cursos de ação que, se prosseguidos, teriam um efeito direto e dinâmico sobre todos nós. A maioria aplaudiria suas decisões, uns poucos ficariam assustados. O homem que fora rapidamente chamado de "O Papa Sorriso" tencionava remover os sorrisos de diversos rostos no dia seguinte.

Naquela noite, Albino sentou para comer na sala de jantar no terceiro andar do Palácio Apostólico, na Cidade do Vaticano. Tinha a companhia de seus dois secretários, Padre Diego Lorenzi, que trabalhara como ele em Veneza por mais de dois anos, quando Luciani, como cardeal, ali fora Patriarca, e Padre John Magee, que assumira o posto recentemente, depois da eleição papal. Enquanto as freiras que trabalhavam nos aposentos papais pairavam ansiosamente pelas proximidades, Albino Luciani comeu uma refeição frugal, de sopa, vitela, vagens frescas e um pouco de salada. Bebia ocasionalmente um gole de água e pensava nos acontecimentos do dia e nas decisões que tomara. Não queria a posição. Não procurara nem solicitara votos para ser o novo Papa. Agora, como Chefe de Estado, tinha de assumir as terríveis responsabilidades.

Enquanto as Irmãs Vincenza, Assunta, Clorinda e Gabrietta serviam silenciosamente os três homens, que assistiam ao noticiário pela televisão sobre os acontecimentos que preocupavam a Itália naquela noite, outros homens, em outros lugares, preocupavam-se profundamente com as atividades de Albino Luciani.

As luzes ainda se achavam acesas um andar abaixo dos aposentos papais, no Banco do Vaticano. Seu diretor, o Bispo Paul Marcinkus, estava absorvido por problemas mais prementes que o seu Jantar. Nascido em Chicago, Marcinkus aprendera tudo sobre a sobrevivência nas ruas de Cicero, em Illinois. Durante a sua meteórica ascensão à posição de "Banqueiro de Deus", sobrevivera a muitos momentos de crise. Confrontava-se agora com a crise mais séria que já lhe surgira. Nos últimos 33 dias, seus colegas no banco haviam notado uma mudança intensa no homem que controlava os milhões do Vaticano. O extrovertido americano de 1,90m de altura, 100 quilos de peso, tornara-se soturno e introspectivo. Estava visivelmente emagrecendo e seu rosto adquirira uma palidez extrema. Sob muitos aspectos, a Cidade do Vaticano é uma aldeia... e é muito difícil se guardar segredos numa aldeia. Marcinkus tomara conhecimento dos rumores de que o novo Papa iniciara discretamente uma investigação pessoal do Banco do Vaticano e especificamente dos métodos usados pelo bispo americano em sua condução. Por muitas vezes, desde o advento do novo Papa, Marcinkus lamentara o negócio em 1972 com o Banca Cattolica del Veneto.

O Secretário de Estado do Vaticano, Cardeal Jean Villot, era outro que ainda se achava em seu gabinete de trabalho naquela noite de setembro. Estudava a lista de nomeações, renúncias a serem pedidas e transferências, que o Papa lhe entregara uma hora antes. Villot aconselhara, argumentara e protestara, mas tudo em vão. Luciani se mostrara intransigente.

Era uma reformulação dramática, por quaisquer padrões. Lançaria a Igreja por novos rumos, que Villot e os outros na lista, prestes a ser substituídos, consideravam altamente perigosos. Quando aquelas mudanças fossem anunciadas, haveria a respeito milhões de palavras escritas e pronunciadas nos meios de comunicação do mundo inteiro, analisando, dissecando, profetizando, explicando. A verdadeira explicação, no entanto, não seria discutida, jamais seria oferecida ao conhecimento público. Havia um denominador comum, um fato que ligava todos os homens que estavam em vias de ser substituídos, Villot sabia disso. E o que era mais importante, o Papa também sabia. Fora um dos fatores que o levaram a agir, a necessidade de despojar aqueles homens de poder concreto e colocá-los em posições relativamente inofensivas. Era a Maçonaria.

Mas não era a Maçonaria convencional que preocupava o Papa, embora a filiação a essa sociedade fosse considerada pela Igreja motivo para excomunhão automática. Sua preocupação maior era com a loja maçônica ilegal que se expandiria além das fronteiras da Itália em sua busca de dinheiro e poder, denominando-se P2. O fato de ter penetrado no Vaticano e estabelecido vínculos com padres, bispos e até mesmo cardeais fez da P2 um anátema para Albino Luciani.

Villot já começara a ficar profundamente preocupado com aquele novo papado antes mesmo daquela última bomba. Era um dos poucos que tinha conhecimento do diálogo ocorrendo entre o Papa e o Departamento de Estado, em Washington. Sabia que, a 23 de outubro, o Vaticano receberia uma delegação do Congresso americano. No dia seguinte, essa delegação teria uma audiência particular com o Papa. O assunto seria o controle da natalidade.

Villot estudara cuidadosamente o dossiê do Vaticano sobre Albino Luciani. Também lera o memorando secreto que Luciani, então Bispo de Vittorio Veneto, enviara a Paulo VI, antes da encíclica Humanae Vitae, que proibira aos católicos todas as formas artificiais de controle da natalidade. Suas próprias discussões com Luciani não deixavam margem a qualquer dúvida sobre a posição do novo Papa na questão. Villot também não tinha qualquer dúvida sobre o que Luciani tencionava fazer. Haveria uma mudança de posição que alguns classificariam de traição a Paulo VI, enquanto muitos aclamariam como a maior contribuição da Igreja ao século XX.

Em Buenos Aires, outro banqueiro estava pensando em João Paulo I naquele final de setembro. Nas semanas anteriores, discutira os assuntos propostos pelo novo Papa com seus protetores, Licio Gelli e Umberto Ortolani, dois homens que podiam incluir, entre suas muitas atividades, o completo controle sobre Roberto Calvi, Presidente do Banco Ambrosiano. Calvi já estava sobrecarregado de problemas, antes mesmo da eleição papal que colocou Albino Luciani no trono de São Pedro. O Banco da Itália investigava secretamente o banco de Calvi em Milão desde abril. Era uma investigação impelida por uma misteriosa campanha contra Calvi, que começara ao final de 1977. Os cartazes forneciam informações sobre algumas das atividades criminosas de Calvi e sugeriam outras tantas.

Calvi conhecia exatamente o progresso da investigação do Banco da Itália. Sua amizade Intima com Licio Gelli lhe garantia um relato diário. Estava igualmente a par da investigação papal no Banco do Vaticano. Como Marcinkus, sabia que era apenas uma questão de tempo antes que as duas investigações independentes compreendessem que sondar um daqueles impérios financeiros era sondar a ambos. Estava fazendo tudo, na extensão do seu poder considerável, para frustrar a investigação do Banco da Itália e proteger o seu império financeiro, do qual se achava no processo de roubar mais de um bilhão de dólares.

Uma análise cuidadosa da situação de Roberto Calvi em setembro de 1978 deixa absolutamente claro que, se o Papa Paulo VI fosse sucedido por um homem honesto, o banqueiro sofreria a ruína total, o colapso de seu império financeiro e certamente a prisão. E não havia a menor dúvida de que Albino Luciani era um homem assim.

Em Nova York, o banqueiro siciliano Michele Sindona também acompanhava ansiosamente as atividades do Papa João Paulo 1. Havia mais de três anos que Sindona lutava contra as tentativas do governo italiano de extraditá-lo. Queriam que ele fosse levado a Milão para enfrentar a acusação de desvio fraudulento de 225 milhões de dólares. Em maio daquele ano, parecia que Sindona finalmente perdera a longa batalha. Um juiz federal americano decidira que o pedido de extradição deveria ser atendido.

Sindona permanecera em liberdade, sob uma fiança de três milhões de dólares, enquanto seus advogados se preparavam para uma última cartada. Exigiram que o governo dos Estados Unidos provasse que havia motivos concretos para justificar a extradição. Sindona assegurava que as acusações levantadas contra ele pelo governo italiano eram obra de comunistas e outros políticos de extrema esquerda. Seus advogados também afirmavam que o promotor de Milão escondera provas da inocência de Sindona e que seu cliente quase que certamente seria assassinado ou recambiado à Itália. A audiência estava marcada para novembro.

Naquele verão, em Nova York, havia outras pessoas igualmente ativas por conta de Michele Sindona. Um membro da Máfia, Luigi Ronsisvaíle, um assassino profissional, ameaçava de morte a testemunha Nicola Biase, que anteriormente prestara depoimento contra Sindona no processo de extradição. A Máfia também expedira um contrato contra a vida de John Kenney, assistente de promotor federal, que atuava no processo. O preço que se oferecia pela morte do promotor era de 100 mil dólares.

Se o Papa João Paulo I continuasse a investigar os negócios do Banco do Vaticano, então não adiantariam todos os contratos da Máfia para evitar que Sindona fosse extraditado de volta à Itália. A teia de corrupção no Banco do Vaticano, que incluía a legalização do dinheiro da Máfia por seu intermédio, ia muito além de Calvi, estendendo-se até Michele Sindona.

Em Chicago, outro Príncipe da Igreja Católica preocupava-se e irritava-se com os acontecimentos na Cidade do Vaticano. Era o Cardeal John Cody, chefe da arquidiocese mais rica do mundo. Cody reinava sobre dois e meio milhões de católicos e quase três mil sacerdotes, sobre 450 paróquias e uma receita anual que ele se recusava a revelar em sua totalidade a quem quer que fosse. Estava na verdade acima dos 250 milhões de dólares. O sigilo fiscal era um dos problemas que atormentavam Cody. Ele já dominava Chicago há 13 anos em 1978.

Durante esse período, os pedidos para sua substituição haviam alcançado proporções extraordinárias. Padres, freiras, trabalhadores leigos e pessoas de muitas profissões seculares solicitaram a Roma, aos milhares, o afastamento de um homem que consideravam um déspota.

O Papa Paulo se angustiara por anos com a perspectiva de remoção de Cody. Pelo menos em uma ocasião reuniu coragem suficiente e tomou a decisão, só para revogar a ordem no último momento. A personalidade complexa e torturada de Paulo era apenas parte do motivo para a vacilação. Paulo sabia que havia outras alegações contra Cody, secretas, com provas substanciais, que indicavam a necessidade urgente de substituir o Cardeal de Chicago. Ao final de setembro, Cody recebeu um telefonema de Roma. A aldeia que era a Cidade do Vaticano deixara transpirar outra informação — e o Cardeal Cody sempre pagara muito bem por informações importantes, ao longo dos anos. O interlocutor avisou-o de que, onde o Papa Paulo se angustiara na indecisão, seu sucessor João Paulo agira. O Papa decidira que o Cardeal Cody seria substituído.

Mais de três desses homens pelo menos se ocultavam na sombra de outro, Licio GeIli. Chamavam-no "11 Burattinaio" — o titereiro. Os títeres eram muitos e se espalhavam por vários países. Controlava a P2 e, através dela, a Itália. Em Buenos Aires, a cidade onde discutira com Calvi o novo Papa, o titereiro organizou a triunfante volta do General Perón ao poder — um fato que Perón subseqúentemente reconheceu ao ajoelhar-se aos pés de Gelli. Se Marcinkus, Sindona ou Calvi estavam ameaçados pelos vários cursos de ação planejados por Albino Luciani, era de interesse para Licio Gelli que tais ameaças fossem removidas.

É mais do que evidente que, a 28 de setembro de 1978, todos esses homens, Cody, Marcinkus, Villot, Calvi, Sindona e Gelli tinham muito a temer se o papado de João Paulo 1 continuasse. E igualmente evidente que todos eles teriam muito a ganhar, por diversas maneiras, se o Papa João Paulo 1 morresse subitamente.

Foi o que aconteceu, em algum momento entre o final da noite de 28 de setembro de 1978 e o início da madrugada de 29 de setembro de 1978, 33 dias depois de sua eleição, Albino Luciani morreu.

Hora da morte: desconhecida. Causa da morte: desconhecida.

Estou convencido de que os fatos totais e as circunstâncias completas descritas nas páginas subsequentes contêm a chave para a verdade sobre a morte de Albino Luciani. Estou igualmente convencido de que um desses seis homens já iniciara, no começo da noite de 28 de setembro de 1978, um curso de ação para resolver os problemas apresentados pelo pontificado de Albino Luciani. Um desses homens se encontrava por trás de uma conspiração que aplicou a Solução Italiana.

Albino Luciani fora eleito Papa a 26 de agosto de 1978. Pouco depois do Conclave, o cardeal inglês, Basil Hume disse: — A decisão foi inesperada. Mas depois que aconteceu, parecia total e inteiramente certa. O sentimento de que ele era justamente o que desejávamos foi tão generalizado que compreendemos que ele era, inegavelmente, o candidato de Deus.

Trinta e três dias depois o candidato de Deus morreu.

O que se segue é o resultado de três anos de investigações contínuas e intensivas sobre essa morte. Desenvolvi diversas regras para uma investigação dessa natureza. Regra Um: Começar pelo início. Verificar a natureza e personalidade do morto. Que tipo de homem era Albino Luciani?

A Estrada para Roma

A família Luciani vivia na pequena aldeia montanhesa de Canale d'Agordo, quase mil metros acima do nível do mar e cerca de 120 quilômetros ao norte de Veneza.

Por ocasião do nascimento de Albino, a 17 de outubro de 1912, os pais, Giovanni e Bortola, já cuidavam de duas filhas, do primeiro casamento do mando. Como um jovem viúvo com duas filhas e carecendo de um emprego fixo, Giovanni não podia ser o sonho de uma moça convertido em realidade. Bortola cogitara antes de se tomar uma freira de convento. Era agora a mãe de três crianças. O parto foi longo e árduo. Bortola, demonstrando uma ansiedade que se tomaria um dos pontos marcantes dos primeiros anos da vida do menino, receava que o filho estivesse prestes a morrer. Ele foi prontamente batizado com o nome de Albino, em homenagem a um amigo íntimo do pai, que morrera na explosão acidental de uma fornalha, quando ambos trabalhavam na Alemanha, O garoto entrou num mundo que dali a dois anos estaria em guerra, depois do assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando e sua esposa.

Os primeiros 14 anos deste século são considerados por muitos europeus como uma época áurea. Incontáveis escritores já descreveram a estabilidade, o sentimento generalizado de bem-estar, a expansão disseminada da cultura de massa, a vida espiritual satisfatória, o alargamento dos horizontes e a redução das desigualdades sociais.

Exaltam a liberdade de pensamento e a qualidade de vida como se fosse um Jardim do Éden eduardiano. Não resta a menor dúvida de que tudo isso existiu, mas também não se pode ignorar a pobreza assustadora, desemprego em massa, desigualdade social, fome, doença e morte prematura. A maior parte do mundo estava dividida por essas duas realidades. A Itália não era exceção.

Nápoles estava sitiada por milhares de pessoas que queriam emigrar para os Estados Unidos, Inglaterra ou qualquer outro lugar. Os Estados Unidos já haviam acrescentado algumas restrições, em letras miúdas, à declaração "Tragam-me os seus desabrigados, famintos e doentes". Os "infelizes recusados" descobriram que doença, recursos insuficientes, contrato de trabalho, criminalidade e deformidade física eram alguns dos motivos para a rejeição do visto de imigração.

Em Roma, à plena vista da Basílica de São Pedro, milhares de pessoas viviam em caráter permanente em barracos de madeira e palha. No verão, muitos se transferiam para as cavernas nas colinas ao redor. Alguns trabalhavam do amanhecer ao anoitecer em vinhedos, ganhando quatro pence por dia. Nas fazendas, outros trabalhavam no mesmo horário e não recebiam qualquer pagamento em dinheiro. O pagamento era geralmente efetuado em milho estragado, um dos motivos para que tantos trabalhadores rurais sofressem de uma doença de pele chamada pelagra. Submersos até a cintura nos campos de arroz de Pavia, muitos contraíam malária devido às freqüentes mordidas de mosquito. O índice de analfabetismo era superior a 50 por cento. Enquanto um Papa depois de outro ansiava pelo retomo aos Estados Papais, essas condições constituíam a realidade da vida para muitos que viviam naquela Itália unificada.

A aldeia de Canale tinha uma predominância de crianças, mulheres e velhos. A maioria dos homens em idade produtiva era forçada a procurar trabalho em outros lugares. Giovanni Luciani viajava para a Suíça, Áustria, Alemanha e França, partindo na primavera e voltando no outono.

A casa dos Luciani, um velho estábulo parcialmente convertido, tinha uma única fonte de calor, um velho fogão de lenha que aquecera o quarto em que Albino nascera. Não havia jardim tais coisas eram consideradas luxo pelos habitantes das montanhas. A paisagem mais do que compensava: florestas de pinheiros e os picos cobertos de neve, o rio Bioi descendo a cascatear nas proximidades da praça da aldeia.

Os pais de Albino Luciani formavam um estranho casal. Bortola era profundamente religiosa e passava tanto tempo na igreja quanto em sua pequena casa, sempre preocupada e angustiada com sua família cada vez maior. Era o tipo de mãe que, à menor tosse, ficava desesperada e corria a levar a criança ao consultório médico mais próximo. na fronteira. Devota, com aspirações ao martírio, tinha a propensão de contar às crianças com freqüência os muitos sacrifícios que era obrigada a fazer por causa delas. O pai, Giovanni, vagueava pela Europa em guerra em busca de trabalho, passando de pedreiro a carpinteiro, eletricista e mecânico. Como um socialista declarado, era visto pelos católicos devotos como um demônio que devorava padres e queimava crucifixos. A combinação produzia atritos inevitáveis. A recordação da reação da mãe, quando viu o nome do marido em cartazes colocados por toda a aldeia, anunciando que ele concorria a uma eleição local como candidato socialista, permaneceu com o pequeno Albino pelo resto de sua vida.

Albino foi seguido por outro menino, Edoardo, vindo depois uma filha, Antonia. Bortola aumentou a pequena receita da família com o expediente de escrever cartas para os analfabetos e trabalhando como copeira.

A dieta da família consistia de polenta de aveia, cevada, macarrão e quaisquer legumes que aparecessem. Nas ocasiões especiais, podia haver uma sobremesa de carfoni, uma massa doce com recheio de sementes de papoula moldas. Carne era uma raridade. Em Canale, se um homem era bastante rico para se dar ao luxo de matar um porco, tratava de salgá-lo e servia aos pouquinhos à família, durando um ano.

A vocação de Albino para o sacerdócio surgiu ainda cedo e foi ativamente encorajada pela mãe e pelo pároco local, Padre Filippo Carli. Mas se alguma pessoa específica merece o crédito por garantir os primeiros passos de Albino para o sacerdócio é justamente o socialista irreligioso Giovanni. A família Luciani teria que despender uma quantia considerável para que Albino pudesse ingressar no seminário perto de Feltre. Mãe e filho discutiram o assunto pouco antes de Albino completar 11 anos. Bortola acabou sugerindo que o menino escrevesse uma carta para o pai, que estava então trabalhando na França. Albino diria mais tarde que foi uma das cartas mais importantes de sua vida.

O pai recebeu a carta e pensou no problema durante algum tempo, antes de responder. Concedeu a permissão e aceitou o fardo adicional, com as seguintes palavras: "Devemos fazer esse sacrifício."

Assim, em 1923, Albino Luciani, com 11 anos, partiu para o seminário e para a guerra interna que assolava a Igreja Católica. Era então uma Igreja em que estavam proibidos livros como As Cinco Chagas da Igreja, de Antonio Rosmini. Sacerdote e teólogo italiano, Rosmini escrevera em 1848 que a Igreja enfrentava uma crise de cinco males: afastamento social entre o clero e o povo; o baixo padrão de educação dos padres; desunião e acrimônia entre os bispos; a dependência de ordenações leigas sobre as autoridades seculares; e o fato da Igreja ter tantos bens e se achar escravizada à riqueza. Rosmini esperava obter com isso uma reforma liberalizante. O que conseguiu, no entanto, em grande parte por decorrência de intrigas dos jesuítas, foi a condenação de seu livro e a perda do chapéu cardinalício que Pio IX lhe oferecera.

Apenas 58 anos antes do nascimento de Luciani, o Vaticano proclamara o Sílaba de Erros e uma encíclica a acompanhá-lo, Quanta Cura. Nesses documentos, o pontificado denunciava a irrestrita liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. O conceito de posição igual para todas as religiões era totalmente rejeitado. O Papa responsável por essas medidas foi Pio IX. Também deixou claro que detestava profundamente o conceito de governo democrático e que sua preferência era pelas monarquias absolutas. Condenava também "os defensores da liberdade de consciência e da liberdade de religião", assim como "todos aqueles que afirmam que a Igreja não pode usar a força".

Em 1870, esse mesmo Papa convocou um Concílio Vaticano e indicou aos bispos reunidos que o principal item da agenda era a infalibilidade papal. A sua infalibilidade. Depois de muitas pressões intensas, algumas não tão cristãs como se podia esperar, o Papa sofreu uma grande derrota moral quando, entre os mais de mil participantes do Concílio, apenas 451 bispos votaram a favor do conceito. Por uma estratégia combinada, todos os dissidentes, à exceção de dois, deixaram Roma antes da votação final. Na última reunião do Concílio, a 18 de julho de 1870, ficou decidido, por 535 votos contra dois, que o Papa era infalível quando definindo uma doutrina sobre fé ou moral.

Até serem libertados pelas tropas italianas em 1870, o Papa, que se tornara infalível, manteve os judeus de Roma vivendo num gueto. Era igualmente intolerante com os protestantes e recomendava a aprovação da pena de prisão para todos dessa fé que estavam pregando na Toscana. No momento em que escrevo este livro, estão sendo efetuados esforços consideráveis para canonizar Pio IX e convertê-lo num santo.

Depois de Pio IX veio Leão XIII, considerado por muitos historiadores como um homem esclarecido e humanista. Foi seguido por Pio X, julgado por muitos dos mesmos historiadores como um desastre total. Reinou até 1914 e os danos que causou ainda eram muito evidentes quando Albino Luciani ingressou no seminário em Feltre.

O Index de livros que nenhum católico tinha permissão para ler se tomou ainda maior. Editores e autores foram excomungados. Quando livros críticos eram publicados anonimamente, os autores, quem quer que fossem, eram excomungados. O Papa criou uma palavra para abranger tudo o que ele tentava destruir: "modernismo". Contestar os ensinamentos atuais da Igreja constituía um anátema. Com a bênção e ajuda financeira do Papa, um prelado italiano, Umberto Benigni, criou um sistema de espionagem. O objetivo era caçar e destruir todos os modernistas. Assim, no século XX, a Inquisição renasceu.

Com a redução dos seus poderes temporais, pela perda dos Estados Papais, o auto-intitulado "Prisioneiro do Vaticano" não estava em condições de ordenar que as pessoas fossem queimadas vivas em fogueiras, mas uma cutucada aqui, uma piscadela ali, alegações anônimas e sem provas contra um colega ou possível rival foram suficientes para destruir muitas carreiras dentro da Igreja. A mãe estava devorando os próprios filhos. A maioria dos que foram destruídos por Pio e seu circulo era de membros leais e fiéis da Igreja Católica.

Seminários foram fechados. Os que tiveram permissão para continuar a funcionar, a fim de formar a geração seguinte de padres, eram cuidadosamente controlados. Numa encíclica, o Papa declarou que todos os que pregavam ou ensinavam em termos oficiais deviam prestar um juramento especial, repudiando os erros do modernismo. Proclamou também uma proibição geral à leitura de jornais por todos os seminaristas e estudantes de teologia, acrescentando especificamente que essa regra incluía até os melhores jornais.

Anualmente o Padre Benigni, no comando da rede de espionagem que acabou se estendendo por todas as dioceses da Itália e depois pelo resto da Europa, recebia um subsídio de mil liras (aproximadamente 5.000 dólares atuais) diretamente do Papa. Essa organização secreta de espiões só foi dissolvida em 1921. O Padre Benigni tornou-se então um informante e espião de Mussolini.

Pio X morreu a 20 de agosto de 1914. Foi canonizado e tornou-se santo em 1954.

Em Feltre, Luciani descobriu que era crime ler um jornal. Estava num mundo austero, em que os professores eram tão vulneráveis quanto os alunos. Uma palavra ou comentário que não contasse com a aprovação total de um colega podia resultar em um professor perder o direito de ensinar, por causa da rede de espionagem do Padre Benigni. Embora oficialmente dispersada em 1921, dois anos antes de Luciani ingressar em Feltre, a influência dessa rede ainda prevaleceu por todo o período de seu treinamento para o sacerdócio. O questionamento crítico do que era ensinado seria um anátema. O sistema estava projetado para dar respostas, não para estimular perguntas. Os amedrontados professores marcados pelo expurgo, por sua vez, iriam também marcar a geração seguinte.

A geração de sacerdotes de Albino Luciani teve de suportar todo o impacto do Sílabo de Erros e da mentalidade antimodernismo. O próprio Luciani poderia ter se tornado, sob tal influência, mais um padre de mentalidade estreita. Uma variedade de fatores salvou-o desse destino. Um desses fatores, um dom simples mas extraordinário, foi a sede de conhecimento.

Apesar do exagero da mãe com sua saúde nos primeiros anos, houvera um benefício considerável no excesso de proteção. Recusando-se a permitir que o menino se entregasse a brincadeiras rudes com outros de sua idade, substituindo a bola por um livro, ela abriu todo um mundo novo para o filho. Ele começou a ler vorazmente, conhecendo ainda muito pequeno as obras completas de Dickens e Jules Verne. Mark Twain, por exemplo, ele leu aos sete anos, o que era excepcional, num país em que, na ocasião, quase a metade dos adultos nem sabia ler.

Em Feltre, Albino Luciani leu todos os livros que encontrou ali. Mais significativo ainda, lembrava-se praticamente de tudo o que lia. Era dotado de uma memória espantosa. Por isso, embora as perguntas provocantes fosses repudiadas, Luciani assumia a temeridade de apresentá-las de vez em quando. Os professores consideravam-no diligente, mas "esperto demais".

O jovem seminarista voltava para casa no verão. Trabalhava nos campos, usando a batina preta comprida. Quando não estava ajudando na colheita, podia ser encontrado a "reorganizar" a biblioteca do Padre Filippo. Os períodos escolares eram animados ocasionalmente por uma visita do pai. A primeira coisa que Giovanni fazia ao voltar para casa, no outono, era sempre uma visita ao seminário. E, depois, passava o inverno fazendo campanha pelos socialistas.

De Feltre, Luciani passou para o seminário em Belluno. Um dos seus contemporâneos recordou para mim o regime em Belluno:

Éramos acordados às cinco e meia. Não havia aquecimento e a água às vezes virava gelo. Todas as manhãs, eu costumava perder minha vocação por cinco minutos. Tínhamos 30 minutos para nos lavar e arrumar as camas. Conheci Luciani ali em setembro de 1929. Ele tinha então 16 anos. Era sempre amável, sossegado, sereno, a menos que se dissesse alguma coisa que fosse incorreta.., ele se tomava então como uma fonte impetuosa. Fui informado de que sempre se devia falar com todo cuidado em sua presença. Qualquer pensamento confuso e se corria perigo com ele.

Havia diversas obras de Antonio Rosmini entre os livros que Luciani leu nessa ocasião. Destacando-se por sua ausência da biblioteca do seminário estava As Cinco Chagas da Igreja. Em 1930, ainda permanecia no Index dos Livros Proibidos. Conhecendo agora a repercussão do livro, Luciani adquiriu discretamente seu exemplar. Teria uma influência profunda e duradoura em sua vida.

Para os professores de Luciani, o Sílabo de Erros, proclamado em 1864 por Pio IX, ainda devia ser considerado como a suprema verdade na década de 30. Era inconcebível a tolerância de uma opinião não-católica em qualquer país em que os católicos estivessem em maioria. A versão de Mussolini do fascismo não era a única que se ensinava na Itália nos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial. O erro não tem direitos. A exceção aparentemente ocorria quando era o professor quem estava em erro, quando então seus direitos se tornavam absolutos.

A visão de Luciani, ao invés de ser expandida por seus professores, começou sob certos aspectos a encolher. Felizmente, estava sujeito a outras influências além da que recebia dos professores. Outro antigo colega de Belluno recordou:

Ele lia os dramas de Goldoni. Lia os romancistas franceses do século XIX. Comprou uma coleção das obras de Pierre Couwase, um jesuíta francês do século XVII, leu tudo, do princípio ao fim.

A influência das obras de Couwase foi tão forte que Luciani começou a pensar seriamente em se tornar jesuíta. Observou um amigo íntimo e depois outro procurarem o reitor, Bispo Giosue Cattarossi, solicitando permissão para ingressarem na ordem jesuíta. Luciani fez a mesma coisa. O bispo considerou o pedido por algum tempo e respondeu:

Não. Três é demais. É melhor você continuar aqui.

Ele foi ordenado padre aos 23 anos, a 7 de julho de 1935, em San Pietro, Belluno. No dia seguinte, celebrou a sua primeira missa, em sua cidade natal. A satisfação sentida por ter sido designado para coadjutor em Forno di Canale foi total. O fato de ser a mais humilde posição clerical na Igreja não tinha a menor importância. Na congregação de amigos, conhecidos, sacerdotes da região e família estava um muito orgulhoso Giovanni Luciano, que agora tinha um emprego permanente, relativamente perto de casa, como soprador de vidro na ilha de Murano, perto de Veneza.

Em 1937, Luciani foi nomeado vice-reitor de seu antigo seminário em Belluno. O conteúdo de seus ensinamentos nessa ocasião não diferia muito do que recebera de seus professores, mas seu comportamento era certamente muito diferente. Elevou o que era quase sempre uma teologia insípida e tediosa a algo revigorante e memorável. Depois de quatro anos, porém, sentiu necessidade de expandir-se. Queria obter um doutorado em teologia. Isso implicava o deslocamento para Roma e ingresso na Universidade Gregoriana. Seus superiores em Belluno queriam que ele continuasse a ensinar ali, ao mesmo tempo em que estudava para o doutorado. Luciani se dispunha a aceitar, mas a Universidade Gregoriana insistiu em pelo menos um ano de freqüência obrigatória, em Roma.

Após a intervenção de Angelo Santin, o diretor de Belluno, e do Padre Felice Capello, um renomado conhecedor de Direito Canônico que ensinava na Gregoriana e era aparentado com Luciani, o Papa Pio XII concedeu pessoalmente uma dispensa, numa carta assinada pelo Cardeal Maglione e datada de 27 de março de 1941. (O fato de que a Segunda Guerra Mundial estava então em pleno furor destrutivo não transparece na correspondência do Vaticano.) Luciani escolheu para sua tese "A Origem da Alma Humana Segundo Antonio Rosmini".

Suas experiências durante a guerra foram uma mistura extraordinária do sagrado e do profano. Incluíram melhorar seu alemão, escutando as confissões de soldados do Terceiro Reich. Incluíram também o estudo meticuloso das obras de Rosmini ou a parte delas que não estava proibida. Posteriormente, quando Luciani tomou-se Papa, haveria de se dizer que sua tese foi "brilhante". Essa pelo menos foi a opinião do jornal do Vaticano, Osservatore Romano uma opinião que não expressaram nas biografias anteriores ao Conclave. Não é uma opinião partilhada pelos professores da Gregoriana. Um descreveu-a para mim como "uma obra competente". Outro declarou:

Na minha opinião, não tem o menor valor. Mostra um conservantismo extremado e também carece de um método de análise.

Muitos diriam que o interesse de Luciani e o envolvimento com as obras de Rosmini eram indicações patentes de seu pensamento liberal.

O Albino Luciani da década de 40, no entanto, estava muito longe de ser um liberal. Sua tese tenta refutar Rosmini em todos os pontos. Ele ataca o teólogo do século XIX por usar citações incorretas e de segunda mão pela superficialidade e "esperteza engenhosa". E uma demolição implacável e uma indicação óbvia de uma mentalidade reacionária.

Nos intervalos de seu empenho para provar que Rosmini citara erroneamente a Santo Tomás de Aquino, Albino Luciani trilhava um caminho delicado quando ensinava a seus alunos em Belluno. Ele lhes dizia para não interferirem quando vissem soldados alemães prendendo grupos locais da resistência. Particularmente, simpatizava com a resistência, mas sabia que, entre os seminaristas na sala de aula, havia muitos que eram pró-fascistas. Sabia igualmente que o movimento de resistência estava provocando represálias dos alemães contra a população civil. Casas eram destruidas, homens detidos e enforcados nas árvores. No último período da guerra, no entanto, o seminário de Luciani tornou-se um refúgio para membros da resistência. A descoberta pelos soldados alemães resultaria em morte certa, não apenas para os combatentes da resistência, mas também para Luciani e seus companheiros.

A 23 de novembro de 1946, Luciani defendeu sua tese. Foi finalmente publicada a 4 de abril de 1950. Ele obteve um magnum cum laude e tornou-se doutor em teologia.

Em 1947, o Bispo de Belluno, Girolamo Bortignon, fez de Luciani, Pró-Vigário-Geral da diocese e pediu-lhe que organizasse o próximo Sínodo e a reunião interdiocesana de Feltre e Belluno. O aumento de responsabilidade coincidiu com um alargamento da perspectiva. Embora ainda incapaz de aceitar Origens da Alma de Rosmini, Luciani começara a avaliar e concordar com a opinião dele sobre os males que afligiam a Igreja. O fato de que os mesmos problemas ainda persistiam um século depois fazia com que se tomassem ainda mais pertinentes os fatores de afastamento social, sacerdócio despreparado, desunião entre bispos, aliança perniciosa de poder entre Igreja e Estado e, acima de tudo, a preocupação da Igreja com a riqueza material.

Em 1949, Luciani foi indicado para ser responsável pela catequese, em preparação para o Congresso Eucarlstico que se realizaria naquele ano em Belluno. Isso e mais a sua experiência de ensinar impeliram-no a escrever, iniciando com um pequeno livro englobando as suas opiniões, intitulado Catechsi in Briciole (Catecismo em Migalhas).

Aulas de catecismo: Constituem possivelmente a mais antiga recordação da maioria dos adultos católicos. Muitos teólogos tendem a menosprezá-las, mas é precisamente a esse estágio de desenvolvimento que os jesuítas se referem quando falam em "pegar uma criança para a vida . Albino Luciani foi um dos melhores professores da matéria que a Igreja teve neste século. Possuía a simplicidade de pensamentos que só se encontra nos que são excepcionalmente inteligentes, acrescentando-se a isso uma humildade genuína e profunda.

Em 1958, Dom Albino, como era agora conhecido por todos, levava uma vida sossegada. O pai e a mãe já estavam mortos. Fazia visitas freqüentes ao irmão, Edoardo, agora casado e residindo na casa da família, e à irmã, Antonia, também casada e morando em Trento. Como Vigário-Geral de Belluno, tinha trabalho mais do que suficiente para ocupá-lo. Como lazer, dispunha de seus livros. Não sentia muito interesse por comida, aceitando qualquer coisa que lhe servissem. As principais formas de exercício eram andar de bicicleta pela diocese ou escalar as montanhas próximas.

Esse homem pequeno e sossegado conseguia, aparentemente sem tentar, causar um efeito extraordinário e duradouro nas pessoas. Conversando muitas vezes com aqueles que o conheceram, pude perceber uma mudança notável se processar na pessoa que recordava Albino Luciani. Os rostos se abrandavam, literalmente relaxavam. As pessoas sorriam. Sorriam muito ao relembrarem o homem. Tornavam-se mais gentis diante de meus olhos. E evidente que ele atingiu algo muito profundo nos outros. Os católicos chamariam de alma. Indiferente a isso, Albino Luciani já estava deixando um legado singular enquanto circulava de bicicleta por Belluno.

No Vaticano, havia um novo Papa, João XXIII, um homem nascido ali perto, em Bergamo, que era também o berço do homem de quem Albino adquirira o nome de batismo. João estava ocupado em reformular as designações episcopais. Urbani foi para Veneza, a fim de substitui-lo, Carraro para Verona. Havia vaga para um bispo em Vittorio Veneto. O Papa pediu ao Bispo Bortignon que indicasse um nome. A resposta fê-lo sorrir e comentar:

Eu o conheço. Ele me servirá muito bem.

Luciani, com a sua humildade desconcertante que tantos deixariam mais tarde de compreender, declarou depois de sua designação para bispo de Vittorio Veneto:

Fizemos duas viagens de trem juntos, mas ele falou durante a maior parte do tempo. Eu disse tão pouco que ele não podia ter me conhecido.

Luciani, aos 46 anos, foi ordenado bispo pelo Papa João na Basílica de São Pedro, dois dias depois do Natal de 1958.

O Papa estava completamente ciente das atividades pastorais do homem do norte e louvou-as efusivamente. Pegando um exemplar de A Imitação de Cristo, de Thomas à Kempis, o Papa João leu o capitulo 23. Nele estão citados os quatro elementos que proporcionam paz e liberdade pessoal:

Meu filho, tente fazer a vontade do próximo ao invés da sua. Sempre escolha ter menos ao invés de mais. Sempre escolha o lugar mais humilde e ser menos do que todos os outros. Sempre anseie e reze para que a Vontade de Deus possa ser plenamente realizada em sua vida. Descobrirá que o homem que faz tudo isso caminha na terra da paz e do sossego.

Antes de sua ordenação, Luciani escrevera sobre o evento iminente, numa carta a Monsenhor Capovilla, secretário particular do Papa. Usou uma frase que demonstra de maneira impressionante como ele já tentava levar uma vida que abrangia os ideais de Thomas Kempis: "Às vezes o Senhor escreve suas obras na areia."

Na primeira vez em que a congregação se reuniu para ouvir seu novo bispo, em Vittorio Veneto, ele discorreu sobre esse tema:

Comigo, o Senhor torna a usar o seu antigo sistema. Tira os pequenos da lama das ruas. Tira homens dos campos. Tira outros de suas redes no mar ou no lago. Transforma-os em Apóstolos. E o seu antigo sistema. Assim que fui consagrado padre, passei a receber de meus superiores tarefas de responsabilidade. Vim a compreender o que significa para um homem dispor de autoridade. E como uma bola cheia. Se observarem as crianças que brincam na grama, diante desta catedral, vão verificar que nem se dão ao trabalho de olhar quando a bola se acha vazia.

Pode ficar tranquilamente a um canto. Mas quando a bola está cheia, as crianças correm de todos os lados e acham que têm o direito de chutá-la. E o que acontece quando os homens sobem. Portanto, não sejam invejosos.

Mais tarde, ele conversou com os 400 sacerdotes que estavam sob sua responsabilidade, Diversos lhe ofereceram presentes, comida, dinheiro. Ele recusou. Quando todos estavam reunidos, Luciani tentou explicar a razão:

Cheguei sem cinco liras e quero partir sem cinco liras. Meus queridos padres, meus queridos fiéis, eu seria um bispo muito desafortunado se não os amasse. Mas lhes asseguro que os amo e quero estar a serviço de vocês, púr à disposição de todos minhas parcas energias, o pouco que tenho e o pouco que sou.

Ele tinha a opção de residir num apartamento luxuoso no centro da cidade ou levar uma vida mais espartana no Castelo de San Martino. Optou pelo castelo.

Para muitos bispos, a vida que levam é relativamente remota. Há um abismo automático entre eles e seu rebanho, aceito pelas duas partes. O bispo é uma figura esquiva, vista apenas em ocasiões especiais. Albino Luciani assumiu uma opinião diferente sobre o seu papel em Vittorio Veneto. Vestia-se como um simples padre e levava o evangelho a seu povo. Com seus padres, praticava uma espécie de democracia que era extremamente rara dentro da Igreja. Seu conselho presbiterial, por exemplo, era eleito na totalidade, sem nomeações do bispo.

Quando esse conselho recomendou o fechamento de um seminário inferior, Luciani, apesar de não concordar com a decisão, foi a todas as paróquias e conversou a respeito com os padres locais. Assim que lhe ficou evidente que a maioria era favorável, autorizou o fechamento. Os alunos foram transferidos desse antigo seminário para escolas do Estado. Mais tarde, declarou publicamente que a opinião da maioria estava certa e a sua era errada.

Nenhum padre jamais precisava marcar uma reunião com seu bispo. Se algum aparecia, era sempre recebido. Alguns consideravam a sua democracia uma fraqueza. Outros viam-no de maneira diferente e comparavam-no com o homem que o fizera bispo.

Era como ter nosso próprio Papa pessoal. Era como se o Papa Roncalli (João XXIII) estivesse aqui, nesta diocese, trabalhando conosco. Havia geralmente dois ou três padres à sua mesa. Era-lhe simplesmente impossível deixar de se dar. Visitava freqüentemente os doentes ou deficientes. Jamais sabiam nos hospitais quando ele ia aparecer. Surgia de repente de bicicleta ou em seu velho cano, deixava o secretário a ler lá fora, enquanto vagueava pelas enfermarias. E logo depois subia a uma das aldeias montanhesas para discutir um problema especifico com o padre local.

Na segunda semana de janeiro de 1959, menos de três semanas depois de ordenar o Bispo Luciani, o Papa João discutia os problemas mundiais com seu pró-Secretário de Estado, Cardeal Domenico Tardini. Conversaram sobre as implicações do que um jovem chamado Fidel Castro estava fazendo ao regime de Batista em Cuba; sobre o fato de a França ter um novo presidente, General Charles de Gaulle; sobre a demonstração russa de tecnologia avançada, enviando um enorme foguete para entrar em órbita em tomo da Lua. Falaram também sobre a rebelião na Argélia, a terrível pobreza em muitos países latino-americanos, a transformação da África, com uma nova nação aparentemente surgindo a cada semana. Parecia a João que a Igreja Católica não estava se mostrando à altura dos problemas de meados do século XX. Era um momento crucial na história, com uma parcela considerável do mundo se virando para as coisas materiais e se afastando das coisas espirituais. Ao contrário de muitos no Vaticano, o Papa considerava que a reforma, como a caridade, devia começar em casa. Subitamente, João teve uma idéia. Diria depois que foi uma inspiração do Espírito Santo. De onde quer que tenha vindo, foi uma excelente idéia: "Um Concílio".

Surgiu assim a idéia do Concilio Ecumênico Vaticano Segundo. O primeiro, em 1870, resultara em dar à Igreja um Papa infalível. Os efeitos do segundo, muitos anos depois de sua conclusão, ainda reverberam pelo mundo.

A 11 de outubro de 1962, 2.381 bispos reuniram-se em Roma para a cerimônia de abertura do Concilio Vaticano Segundo. Albino Luciani estava entre eles. Enquanto as reuniões do Concílio progrediam, Luciani fez amizades que persistiriam pelo resto de sua vida. Suenens, da Bélgica. Wojtyla e Wyszynski, da Polônia. Marty, da França. Thiandoun, de Dakar. Luciani também experimentou, durante o Concílio , a sua estrada para Damasco. Foi a declaração do Concílio da Liberdade Religiosa.

Outros não ficaram tão impressionados com essa nova maneira de encarar um problema antigo. Homens como o Cardeal Alfredo Ottaviani, que controlava a Cúria Romana, estavam determinados a destruir não apenas o conceito de tolerância, implícito em Da Liberdade Religiosa, mas também empreendiam uma encarniçada ação de retaguarda contra qualquer coisa que parecesse com o que Pio X classificara, no inicio do século, de "modernismo". Era a geração que ensinara a Luciani no seminário de Belluno que a "liberdade" religiosa se confinava aos católicos. "O erro não tem direitos." Luciani, por sua vez, também ensinara a seus discípulos essa mesma doutrina estarrecedora. Agora, no Concílio Vaticano Segundo, escutava com crescente dúvida, enquanto um bispo depois de outro contestava o conceito.

Luciani tinha mais de 50 anos quando analisou os argumentos a favor e contra. Sua reação foi típica desse prudente homem das montanhas. Discutiu o problema com outros, meditou bastante, concluiu que o "erro" estava no conceito que lhe fora ensinado.

Foi também típica do homem que posteriormente publicou um artigo explicando como e por que mudara de idéia. Começou com uma recomendação aos leitores:

Se depararem com o erro, ao invés de arrancá-lo pelas raízes ou derrubá-lo, vejam se podem desbastá-lo pacientemente, permitindo que a luz brilhe sobre o núcleo de bondade e verdade que geralmente jamais falta, mesmo nas opiniões errôneas.

Outros aspectos dos diversos debates causaram-lhe menos dificuldade. Quando os princípios da igreja pobre uma igreja carecendo de poder político, econômico e ideológico foram exaltados, o Concílio estava simplesmente procurando por algo em que Luciani já acreditava.

Antes do início do Concílio, Luciani emitira uma carta pastoral, "Comentários sobre o Concílio", a fim de preparar suas congregações. Agora, com o Concílio ainda em sessão, as mudanças que ele já introduzira na diocese de Vittorio foram aceleradas. Recomendou a seus professores de seminário que lessem os novos ensaios teológicos e descartassem manuais que ainda se viravam ansiosamente para o século XIX. Enviou seus professores a fazerem cursos nas principais universidades teológicas da Europa. Não apenas os professores, mas também os discípulos podiam ser encontrados agora à sua mesa. Escrevia semanalmente para todos os seus padres, partilhando suas idéias e planos.

Em agosto de 1962, poucos meses antes da abertura do Concílio Vaticano Segundo, Luciani se confrontou com um exemplo de erro de uma espécie inteiramente diferente. Dois padres da diocese envolveram-se com um representante de vendas de conversa insidiosa ,que também especulava com imóveis. Cederam à tentação. Depois, um deles procurou Luciani e confessou que o dinheiro que faltava, a maior parte de pequenas poupanças, ultrapassava dois bilhões de liras.

Albino Luciani tinha idéias definidas sobre dinheiro e riqueza, especialmente a riqueza da Igreja. Algumas dessas idéias derivavam de Rosmini, outras diretamente de sua experiência pessoal. Acreditava numa Igreja Católica dos pobres e para os pobres. As ausências compulsórias do pai, a fome e o frio, os sapatos de madeira com pregos extras nas solas para que não gastassem, cortar capim nas encostas da montanha para aumentar a escassa alimentação da família, os longos periodos no seminário sem ver a mãe, que não tinha condições de visitá-lo, tudo isso produziu em Luciani uma profunda compaixão pelos pobres, uma indiferença total à aquisição de riqueza pessoal e uma convicção de que a Igreja, a sua Igreja, não devia apenas ser materialmente pobre, mas também vista assim.

Consciente dos danos do escândalo, procurou pessoalmente o editor do jornal de Veneza, Ii Gazzetino. Pediu-lhe que não tratasse o assunto com sensacionalismo. Voltando à diocese, convocou seus 400 padres para uma reunião. A prática normal teria sido alegar imunidade eclesiástica. Com isso, a Igreja não seria obrigada a pagar coisa alguma. Falando calmamente, Luciani disse a seus padres:

"É verdade que dois de nós erraram. Acho que a diocese deve pagar. Também acho que a lei deve prosseguir por seu curso normal. Não devemos nos esconder por trás de qualquer imunidade. Há uma lição para todos nós neste escândalo. E a de que devemos ser uma Igreja pobre. Tenciono vender todos os tesouros eclesiásticos. E tenciono também vender um dos nossos prédios. O dinheiro será usado para pagar até a última lira que esses padres devem. Peço a concordância de todos!".

Albino Luciani obteve a concordância geral. Sua ética prevaleceu. Alguns dos presentes à reunião admiraram o homem e sua ética. Outros, quase pesarosos, comentaram que achavam Luciani ético demais em tais questões. O especulador imobiliário que envolvera os dois padres estava obviamente entre os que consideravam o bispo "ético demais". Ele cometeu suicídio antes do julgamento. Um dos padres cumpriu uma pena de prisão de um ano e o outro foi absolvido.

Houve muitos entre o sacerdócio que não ficaram satisfeitos com a maneira pela qual Luciani adotou entusiasticamente o espírito do Concílio Vaticano Segundo. Como Luciani, o pensamento deles fora moldado em anos anteriores, mais repressivos. Ao contrário dele, não estavam preparados para reformular esse pensamento. Esse problema haveria de ocupar Luciani constantemente durante o resto do seu tempo em Vittorio Veneto. Com a mesma voracidade com que lera um livro depois de outro na juventude, Luciani agora, nas palavras de Monsenhor Ghizzo, que trabalhou com ele, "absorveu totalmente o Concilio Vaticano Segundo; tinha o Concílio no sangue; conhecia os documentos de cor; mais ainda, aplicava os documentos".

Ele tornou Vittorio Veneto cidade-irmã de Kiremba, no Burundi, anteriormente parte da África Oriental Alemã. Em meados da década de 60, quando visitou Kiremba, ele se defrontou pessoalmente com o Terceiro Mundo. Quase 70 por cento dos três e um quarto milhões de habitantes do pais eram católicos. A fé florescia, mas o mesmo acontecia com a pobreza, doença, um alto índice de mortalidade infantil e a guerra civil. As igrejas estavam cheias, mas as barrigas vazias. Foram realidades assim que inspiraram o Papa João a convocar o Concilio Vaticano Segundo, na tentativa de levar a Igreja ao século XX. Enquanto a velha guarda da Cúria Rom