Prefácio Amigos da Cruz

Prefácio

           

           É um grande Apóstolo da Cruz que expande sua alma nesta carta. A exemplo de São Paulo, Montfort "só quer saber... Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado (I Cor., II, 2); Cristo pregado na Cruz, que é escândalo para os Judeus, para o mundo loucura, mas, para os eleitos... é Sabedoria de Deus" (I Cor., I, 23-24)

            Em seu livro intitulado "O Amor da Sabedoria eterna", belas páginas já cantavam o mistério de nossa salvação, principalmente, entre outras, aquelas em que é celebrada a união indissolúvel de Jesus com a Cruz (n° 168 e segs.). Num lirismo não igualado, demonstra aí que não se pode amar a um sem amar a outra. E é o programa da vida cristã, proposto pelo Divino Mestre a todos os seus discípulos, que São Luís Maria comenta sem artifícios, para uso dos seus queridos "Amigos da Cruz".

            Ao pregar em Nantes, em 1708, uma missão na paróquia de São Similiano, o Padre de Montfort havia agrupado, numa Confraria dos Amigos da Cruz, os seus ouvintes mais fervorosos. Ao passar por essa cidade, em várias ocasiões, os havia animado a perseverar em seu fervor primitivo. Bem cedo lhe foi preciso reduzir as conversas particulares o seu ministério junto a eles. Assim aconteceu notadamente durante o decorrer do verão de 1714, quando o santo missionário empreendeu sua viagem à Normandia. Não pôde, com efeito, usar publicamente da palavra; a interdição que pesava sobre ele, desde o incidente do Calvário de Pont-Château, não havendo sido ainda levantada.

            Rennes era sua segunda etapa depois de Nantes. Lá também os Jansenistas vigiavam e suas intrigas reduziram ao silêncio o seu temível adversário. A seu pedido, os Padres Jesuítas abriram ousadamente a porta do colégio onde outrora haviam formado sua jovem alma. O apóstolo aí se refugiou em retiro; durante oito dias contemplou o mistério do Calvário. Incessantemente face a face e coração a coração com o Homem das Dores e com sua Mãe Santíssima, hauriu novas luzes e as mais ardentes chamas.

            É o fruto de sua contemplação que, "no seu último dia de retiro", quis fazer saborear aos seus fervorosos discípulos, nas páginas de uma carta em que o ardor de apóstolo consumido de desejo de atrair as almas para o caminho da cruz, se tempera sabiamente de prudência nos conselhos práticos que lhes apresenta.

            Quererá isto dizer que se deva ver na "Carta Circular aos Amigos da Cruz" uma improvisação? Decerto que Não; é ela que o Santo viveu e pregou durante toda a sua vida. São testemunhas disto os seus dois cânticos sobre "A força da paciência" (39 estrofes e 8 versos) e "O triunfo da Cruz" (31 estrofes do mesmo comprimento), que ele vinha rimando, segundo se julga, desde o Seminário, e onde encontramos quase todos os elementos da Carta. É testemunha disto o lugar que dá, no alto de seus 62 "Oráculos", ao programa do Divino Mestre: "Se alguém quiser vir após mim...", e que aqui se encontra longamente desenvolvido. É testemunha, disto, principalmente, o belo capítulo intitulado "O triunfo da eterna Sabedoria na Cruz e pela Cruz", capítulo XIV de "O Amor da Eterna Sabedoria", obra escrita, sem dúvida, em sua juventude sacerdotal. Testemunham ainda os seus três planos de sermões sobre "O Amor da Cruz", e outro sobre "A Exaltação da Santa Cruz", seguido de "XV Práticas para se conduzir nas cruzes com perfeição". Testemunha-o, por fim, a Cruz coberta de máximas que fez erguer no Hospital de Poitiers, "no meio da sala em que reuniu as primeiras Filhas da Sabedoria".

            Ao encontrar, na Carta-Circular, as riquezas da Escritura, dos Padres da Igreja e dos teólogos, onde Montfort hauriu o melhor de sua doutrina, não se pode deixar de reconhecer a parte de influência exercida sobre ele por M. Boudon, ilustre arcipreste de Evreux. "Les Sainctes Voyes de la Croix", por este autor, eram, segundo o testemunho de M. Blain, condiscípulo de Luís Maria, seu livro preferido no Seminário de São Sulpício. Encontramos na "Carta aos Amigos da Cruz" várias passagens extraídas do livro de M. Boudon. Já não havia "Le Sainct Esclavage de la Mère de Dieu", pelo mesmo autor, feito as delícias do Seminarista que deveria escrever um dia o "Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem?"

            Gostamos - e a justo título - de ver em Montfort o grande apóstolo de Nossa Senhora. Sua perfeita devoção a Maria, porém, é apenas um meio, o meio por excelência, de conduzir a almas a Jesus. "Se estabelecemos a sólida devoção à Santíssima Virgem é apenas para mais perfeitamente estabelecer a de Jesus Cristo, é apenas para dar um meio fácil e seguro de encontrar Jesus Cristo" (V.D., n° 62).

            Procuremos lembrar-nos disto ao ler e meditar a "Carta sobre a Escravidão à Santíssima Virgem" e talvez também o seu luminoso tratado da "Verdadeira Devoção". A presente "Carta"  está ligada, ousamos dizer, como desenvolvimento, como complemento do pensamento do Santo autor, "no desígnio que Ele tem de formar um verdadeiro devoto de Maria e um Verdadeiro discípulo de Jesus Cristo"(V.D., n° III).

            Mal acabava de ser escrita a "Carta Circular", foi impressa, na própria Rennes, graças aos bons ofícios de M. d'Orville. Espalhou-se ela assim, largamente, entre os amigos da Cruz e as almas devotas. O manuscrito, entretanto, foi piedosamente conservado. Em 1770, o Revmo. Pe. Besnard, superior geral da Companhia de Maria e das filhas da Sabedoria, atesta que esse manuscrito se acha em poder dos Missionários de Saint-Laurent-sur-Sèvre. Desde então, entretanto, ignora-se o seu paradeiro. Terá ele desaparecido durante a guerra da Vendéa?

            Dada a falta do manuscrito, cuja perda devemos lamentar, dada a falta mesmo de antigos exemplares impressos, utilizamos para esta edição o texto de 1830, publicado pelo Revmo. Pe. Delin, escritor geralmente fidelíssimo em suas transcrições e que fez dessa fidelidade lei.

            Permitimo-nos apenas adotar pontuação e parágrafos mais conformes ao gosto do leitor moderno. Pelo mesmo motivo foram postos em evidência os sumários sugeridos pelo texto, que não trazia nem subtítulos, nem divisões. Foram acrescentados em nota alguns esclarecimentos úteis, bem como as principais referências das passagens da Sagrada Escritura de que a "Carta" está repleta. Como para as outras obras do Santo, números entre colchetes, independentes da paginação, facilitarão as voltas ao texto.

            Foi tomada para modelo, na apresentação desta "Carta", a "Edição-Tipo" (1926) da "Carta sobre a Escravidão à Santíssima Virgem", ou "O Segredo de Maria" (I). Assim as duas cartas irão juntas à conquista das almas, para maior Glória de Jesus e de sua Mãe.

A.P.D.

            (1) "O Segredo de Maria" e o "Método de Rezar o Rosário", também de Montfort.